Antes de falarmos sobre este livro-fábula, vamos falar sobre algumas inutilidades? 

Inutilista!, gritaram. Vocês não percebem que eu estou a acumular cultura? […] A cultura não se gasta. Quanto mais se usa, mais se tem. 

A leitura de Vamos comprar um poeta me fez querer revisitar uma obra de crítica literária que conheci no tempo da faculdade, A Utilidade do Inútil, de Nuccio Ordine. 

Esse pequeno manifesto paradoxal é dividido em três partes e a primeira é dedicada ao tema da útil inutilidade da literatura, que vem ao encontro do pensamento de dar a ela uma utilidade, uma função.

… a primeira é dedicada ao tema da útil inutilidade da literatura; a segunda, consagrada aos efeitos desastrosos produzidos pela lógica do lucro no campo da educação, da pesquisa e das atividades culturais, em geral; na terceira parte, utilizando exemplos elucidativos, reli alguns clássicos que, ao longo dos séculos, têm mostrado a carga ilusória do possuir e os seus efeitos devastadores sobre a dignitas hominis, o amor e a verdade. 

Ao longo de suas reflexões, Ordine traz uma observação de Eugène Ionesco que afirma que se, a utilidade do inútil (da arte) e a inutilidade do útil (vamos colocar aqui o capital) não são compreendidas, tampouco se pode compreender a arte. 

Sentamo-nos os dois e dizemos inutilidades. Algumas dessas inutilidades até são poemas. Ele olha para mim com lágrimas nos olhos (deixei de contabilizar estas coisas), eu fico com uma metáfora na garganta, abraço-o, e somos felizes durante uns segundos, ou melhor, durante eternidade. 

Além disso, ela, a arte literária é como uma criança “nasce para nascer“, impondo-se ao seu autor, pedindo a ele para existir “sem levar em conta ou sem se perguntar se é exigida ou não pela sociedade“, mas esta teria a faculdade de fazer com ela o que bem entender e, portanto, a literatura teria uma função a cumprir. 

O pai apontou para o poeta que fungava e não tinha patrocínio nas roupas e perguntou se aquele exemplar era subversivo, que é a característica mais temida nos poetas, é o equivalente à agressividade dos cães. 

Mas, vejam bem, ela teria a função de ensinar, entreter, educar, preservar uma cultura, porém ela NÃO É esta função. E ainda que não precisem ser uma função, elas são indispensáveis. 

É, sobretudo, muito confuso, que em tempos de capitalismo selvagem ainda tenhamos a necessidade de explicar a utilidade de se ler um livro. 

Para mim, bastaria dizer, é um direito universal que garante a dignidade humana, mas ainda, estaria eu batendo na mesma tecla utilitarista. 

O cerne da questão fica ainda mais complexa quando e aqui faço das palavras de Ordine as minhas:

… seria muito difícil compreender um paradoxo da história: exatamente nos momentos em que a barbárie ganha espaço, a fúria do fanatismo se volta não somente contra seres humanos, mas também contra bibliotecas e obras de arte, contra monumentos e grandes obras-mestras da humanidade.

É, realmente, muito difícil de compreender, como atualmente, sem as barbáries explícitas que tenhamos livros ainda censurados, não é mesmo? 

Debaixo da cama, escondem-se versos, disse ele. Não são monstros ? Alguns versos são. 

Dito isso, vamos à resenha completa de Vamos comprar um poeta?

O preço do poeta cabe no poema?

Falei com o meu irmão. Não podíamos perder o poeta, nem a poesia, nem aquela janela com vista para o mar. Qual janela? A que está em cima da cama do poeta.

Publicado em 2016 em Portugal, chegou às minhas mãos em 2020, como presente na assinatura da Tag Livros, editado pela Dublinense. Vamos Comprar um Poeta é uma fábula singular.  

Escrita pelo português Afonso Cruz, que nos leva para uma realidade totalmente distópica, mas não muito distante da nossa, na qual o mais importante é a utilidade, o preço, o rótulo e a marca. 

Afonso Cruz, nascido em 1971, na Figueira da Foz, é um autor multifacetado, conhecido não apenas por seus romances, mas também por sua atuação como ilustrador, cineasta e músico. 

Sua versatilidade criativa se reflete em suas obras, que frequentemente mesclam elementos de ficção, filosofia e humor, conferindo-lhes uma atmosfera única e envolvente.

Nessa sua história temos uma sociedade que chega ao ápice do materialismo. Na qual, famílias, ao invés de comprar animais de estimação, por exemplo, passam a comprar artistas.

Achei muito estranho que acedessem à minha petição – à petição que irei relatar de seguida – , sem qualquer inquérito por escrito […] Nesse dia, à noite, ao jantar, levantei-me e declarei: Gostava de ter um poeta. Podemos comprar um?

É nesse contexto desta sociedade materialista, no qual as trocas de afeto são contabilizadas, que cada coisa possui um rótulo ou marca e cada ação é medida, que uma garotinha resolve pedir aos pais um poeta.

Dizem que é bom transacionarmos afetos, liga as pessoas e gera uma espécie de lucro que, não sendo um lucro de qualidade, já que não é material e não é redutível a números ou dedutível nos impostos ou gerador de renda, há quem acredite – é uma questão de fé – que pode trazer dividendos. 

A vinda do poeta acaba por trazer inúmeras mudanças na rotina daquela família. Pois ele traz consigo seu ponto de vista que vai minando cada dia que passa a visão utilitarista das coisas. 

[…] ele próprio me disse em poucas palavras, não mais de quinze ou dezasseis, que um poema se pode encontrar dentro de qualquer coisa ou mesmo espalhado no chão. 

Os personagens entram em conflito por estarem experimentando novos sentimentos e novos pontos de vista sobre a vida. Ainda que seja uma transição dolorosa, Afonso Cruz dá poder a seu poeta, para que transforme a dor em beleza. 

Percebi que estava cada vez mais inutilista e que pensava em coisas só pela sua beleza e não queria saber do seu valor monetário ou instrumental. 

Esse livro-fábula é aquela história certeira para se ler, se você está abarrotada(o) de sentimentos, de ressaca literária ou sem acreditar que as coisas possam um dia mudar. 

Vale muito a pena a compra deste poeta. 

2 respostas para “A gente não quer só comida.”.

  1. Avatar de Rodrigo Padrini Monteiro

    Gostei tanto desse livro. Acho que leria algumas vezes. Concordo que é uma história pra se ler caso esteja “abarrotada(o) de sentimentos, de ressaca literária ou sem acreditar que as coisas possam um dia mudar”. Coloquei “A Utilidade do Inútil” na lista.

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    1. Avatar de Nayara Krause

      Obaaa! Depois me conte o que achou! ☺️

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