Sobre os nossos avessos

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Antes que você continue a leitura deste post, tenho dois alertas: este livro é sobre a perda de um pai, cujo fim, eu revelo ao final desta resenha. Então se isso poderá lhe trazer qualquer gatilho emocional, tudo bem parar por aqui mesmo, agradeço a sua visita. 

Ultimamente eu tenho feito um jogo comigo mesma. Eu vejo um título e o escolho para a minha lista de leitura do ano. E por mais que a curiosidade me corroa  por dentro, eu tento ao máximo não buscar nada sobre ele, para não estragar a experiência de lê-lo. 

Eu sabia que o livro de Jeferson Tenório era bom, mas eu não contava com a magnitude de O Avesso da Pele. A narrativa começa sob a perspectiva de Pedro, que busca a história de seu pai nas memórias que ele deixou em vida. 

Às vezes você fazia um pensamento e morava nele. Afastava-se. Construía uma casa assim. Longínqua. Dentro de si. Era esse o seu modo de lidar com as coisas.

Essa é uma história de ausências. Pedro lida com um legado inexorável, o qual eu conheço muito bem: a morte de seu pai. Um pouco daquilo que a psicologia prega, que ao ouvirmos alguém falando de um terceiro, na verdade estamos muito mais próximos de quem é esse alguém interlocutor. 

[…] Eu não queria apenas a sua ausência como legado. Eu queria um tipo de presença, ainda que dolorida e triste […] você será sempre um corpo que não vai parar de morrer. Será sempre o pai que se recusa a partir. 

Portanto, vamos conhecendo a história, não apenas do pai, mas também a de Pedro. Qual encontro este que aconteceu entre um homem e uma mulher que resultou na sua vinda ao mundo? E como uma filha que também tem possui uma ausência posta, busco respostas e explicações de um porquê que talvez eu negue categoricamente. 

[…] Há nos objetos memórias de você, mas parece que tudo que restou deles me agride ou me conforta, porque são sobras de afeto. Em silêncio, esses mesmos objetos me contam sobre você. É com eles que tento descobrir quantas tragédias ainda podemos suportar. Talvez eu deseje chegar a algum tipo de verdade. 

Por mais que tenha tido em 22 anos a experiência de um amor presente de pai, busco compreender algum tipo de verdade que me explique, que tipo de homem o universo teria colocado para me criar. Onde eu começo? Onde eu termino? 

[…] É assim que se adentra numa vida que já se foi. Tiro o ocutá do alguidar. Lembro o dia em que você me disse que sua cabeça era de Ogum, e que isso era ter sorte, porque Ogum era o único orixá que sabia lidar com os abismos. 

E como adentrar numa vida que já se foi? Este livro é sobre isso. É a procissão da aceitação do fim. 

[…] Teu caos me comove. Olho para tudo isso e percebo que serão esses objetos que vão me ajudar a narrar o que você era antes de partir. Os mesmos utensílios que te derrotaram e que agora me contam sobre você. Os objetos serão teu fantasma a me visitar. 

O fator mais decisivo para ler O avesso da pele foi seu título. Nunca havia parado para pensar na existência de um avesso de pele, embora soubesse intuitivamente do que se tratava. O livro possui 192 páginas e é dividido em quatro partes: A pele, O avesso, De volta a São Petersburgo e A barca. 

[…] Até aquele momento você nunca havia sofrido racismo, assim, tão descaradamente, não que você se lembre. Mas você não se chocou, pois uma espécie de inércia tomou conta do seu corpo, você não sabia reagir. Na época, você nem sabia muito bem o que significava ser negro. Não havia discutido nada sobre racismo nada sobre negritude, nada sobre nada. Naquele momento você era apenas um corpo negro. […]

Em sua primeira parte, conhecemos parte da história de Henrique quando ela era norteada por um conceito de pele. Pedro nos vai contando as desventuras e relacionamentos que seu pai teria tido antes de conhecer a sua mãe. Vamos tendo a notícia do que seria para um jovem rapaz negro nascer em uma das regiões que mais tentou-se branquear com a importação de imigrantes, a região sul do Brasil. 

[…] O afeto transcende a cor da pele, vocês pensavam. 

Meu pai, Ronaldo, pensava o mesmo. Até vir para o Mato Grosso e não enxergar como lar o estado onde nasceu. 

Às vezes, você se sentia intrigado por ter se casado com a minha mãe. Certa vez uma amiga em comum sentenciou sobre a união de vocês […] Vocês eram apenas duas pessoas quebradas. Cada um com seus cacos. Cada um buscando uma escora. O amor como muleta. 

[…]o seu entendimento sobre a vida tomou outra dimensão, e você se deu conta de que ser negro era mais grave do que imaginava […] Numa única aula você aprendeu que a raça era uma mentira. Que a sua cor era uma invenção cruel e orquestrada pelos europeus. Descobriu que a escravidão negra doi sustentada por discursos racistas a partir do século XVIII.

Depois de vermos as personagens tomarem conta da gravidade do que era ser negro na cidade de Porto Alegre, em O Avesso, temos o encontro de Henrique com a mãe de Pedro, Martha. Se apaixonam, decidem viver uma vida juntos, mas tudo desmorona e um filho parece ser a solução para o casal. 

Quando nasci, o médico disse que eu demorei a chorar […] Mas a gente nasce porque tem que nascer. Assim é. E, três dias depois do parto, nós fomos para casa. Você estava confuso com o meu nascimento. Na verdade, minha mãe também. 

[…] Vocês se transformaram numa ilha. Você aceitou facilmente que o amor não era querer que a outra pessoa fosse feliz, mas que ela se apagasse por você, se anulasse por você. 

Este livro nos faz refletir nas próprias relações que construímos ao longo dos anos. E nos vai despertando a consciência dos desconfortos que sentimos e que não demos bola, por simplesmente esperar uma reciprocidade do outro. Ora nossa pele sendo rejeitada, ora nossa pele sendo sexualizada. 

[…] Antes, ela era Martha ou Marthinha. Agora, depois de uma simples pergunta, ela passara a ser Martha e negra. A pele fora nomeada, a existência ganhara sobrenome. Além disso, com a chegada do verão, sua pele escurecia mais ainda, devido à exposição do sol. 

Este livro nos educa. Nos coloca no mapa de nós mesmos. Desejei ter meu pai perto de mim para conversarmos se ele teria passado pela mesma coisa, pois os anos que convivemos, ainda não tinha essa educação sobre minha negritude.

Certa vez, quando eu tinha nove anos, você me perguntou quem era Deus […] Pedro, você sabe quem é Deus? […] Estava quente e eu só tinha nove anos […] e respondi que achava que Deus era um fantasma que morava no céu. […] Como se eu tivesse dito a coisa mais importante do mundo. Talvez hoje eu compreenda por que você ficou comovido com aquela resposta. Conforme fui crescendo, suas perguntas foram ficando mais complexas. E confesso que às vezes eu não queria ser profundo. Eu queria apenas brincar e ser como os outros filhos eram com seus pais. No entanto, agora eu sei que você estava me preparando.

Tudo ainda era um tabu para mim. Um cabelo indomável, pés sempre sujos de cor,  joelhos e cotovelos tratados com bicarbonato de sódio para embranquecê-los, partes íntimas das quais eu sentia vergonha pela sujeira. E, na verdade eu só era uma garotinha preta. 

[…] Você sempre dizia que os negros tinham de lutar, pois o mundo branco havia nos tirado quase tudo e que pensar era o que nos restava. 

Meu pai nunca teve conversas, acerca da pele, como essas que Pedro e Henrique tiveram. Não tivemos o tempo necessário. Foi o que eu tinha pensado. Mas ao ler este livro vejo que preservei o meu avesso com outros ensinamentos dados por ele. 

[…] É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos. 

Este livro é um livro de ausência e adeus. O pai de Pedro, como muitos na realidade brasileira, é  confundido com um suspeito e é morto a tiros. Sobre este livro, corrigiria o seu narrador em apenas um aspecto.

– Pedro, na verdade, em nosso país, infelizmente, um corpo negro sempre será um corpo em risco. Quem sabe um dia possamos transformar essa realidade. Com as notícias da última semana, acredito que ainda falta muito. 

O avesso da pele foi uma das minhas leituras de maio e durante a semana trarei as leituras de junho e julho.

Uma resposta para “Sobre os nossos avessos”.

  1. Avatar de A gente não quer só comida. – A Traça-Livros

    […] difícil de compreender, como atualmente, sem as barbáries explícitas que tenhamos livros ainda censurados, não é […]

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