A estrela que floresceu

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Para muitas, a moça padecia de solidão crônica.

Para nós, que nadamos sempre contra corrente, era diferente. Tanto é que não me conformei com seu fim.

Eu transformei minha inconformidade numa carta, Conceição em um livro-conto: Macabéa – Flor de Mulungu. 

Desde quando vi e não só olhei de relance a moça Macabéa, caída e semimorta no chão, imaginei que a flor de mulungu seria para ela, ou melhor, seria ela. 

Esta obra, de 47 páginas, é um lançamento da Editora Oficina Raquel, conta com as ilustrações de Luciana Nabuco e uma leitura de Conceição Evaristo sobre a obra de Clarice Lispector, A hora da estrela

Não é que Conceição Evaristo precise de uma predecessora para seu texto ser. Mas para vermos o estado de floração de sua Flor de Mulungu, é necessário saber exatamente que hora é exatamente esta que a estrela brilha. 

Foi preciso um tempo. Um tempo profundo, mas de resumidas horas. Nunca tive a vida inteira a me esperar e a dela parecia estar quase-quase se esvaindo. 

Quanto ao futuro

Esta história acontece em estado de emergência e de calamidade pública.

Você por acaso sabia que este último livro de Clarice Lispector, A hora da estrela, possui treze títulos? Pode ir lá conferir, eu espero. Está logo depois da Ficha Catalográfica e antes da Dedicatória do Autor (Na verdade Clarice Lispector). 

A culpa é minha; Ela que se arranje; O direito ao grito; Quanto ao futuro; Lamento de blue; Ela não sabia gritar; Uma sensação de perda; Assovio no escuro; Eu não posso fazer nada; Registro dos fatos antecedentes; História lacrimogênica de cordel e Saída discreta pela porta dos fundos são os outros doze títulos da obra que narra a história da nortista Macabéa.

Tudo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou. 

Muito conhecida por dar voz aos fluxos de consciência de seus personagens, neste livro, numa escrita metaliterária, Clarice Lispector coloca sob a proteção de uma moldura, a história de Macabéa, a qual conhecemos através do tec-tec-tec de Rodrigo S. M. 

Escrevo neste instante com algum prévio pudor por vos estar invadindo com tal narrativa tão exterior e explícita […] A história – determino com falso livre-arbítrio – vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro. Eu, Rodrigo S. M. Relato antigo, este, pois não quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de originalidade. Assim é que experimentei contra os meus hábitos uma história com começo, meio e “gran finale” seguido de silêncio e de chuva caindo. 

E assim, surge a figura dessa nordestina que o autor de sua história vai revelando a si e ao leitor o seu vislumbre, um verdadeiro retrato do desamparo. Embora seja impossível colocar em poucas linhas, se fôssemos resumir seu enredo, este seria assim:

Macabéa sai de sua terra natal para tentar a vida numa cidade grande. Arranja um emprego como datilógrafa, que lhe paga aquém do mínimo. Tem o sonho de ser artista. Chora ao ouvir Una furtiva lacrima. Gosta de comer cachorro quente com Coca Cola, mas ama queijo com goiabada. Flerta com a vida, com a curiosidade e com o Olímpio, que resolve traí-la com a colega de trabalho, Glória. 

Glória, nada arrependida de ter passado a coleguinha para trás, indica uma Cartomante para que Macabéa busque respostas por ter sido abandonada pelo namorado. E lá na sala da feiticeira, tem sua vida lida nas cartas. E que vida! Uma vida linda. Deixando para nós uma resposta após a tragédia que encerra o livro: e quanto ao futuro?

Eu simplesmente amo reler e reler os meus livros preferidos, coisa que eu quase nunca tenho tempo. Mas este é tão curtinho e tão caro que nessa última releitura para fazer esta resenha da obra de Conceição evaristo me deparo já nas primeiras linhas com essa pista de Clarice: 

Trata-se de um livro inacabado porque lhe falta a resposta. Resposta que espero que alguém no mundo ma dê. Vós? É uma história tecnicolor para ter algum luxo, por Deus, eu também preciso. Amém pra todos nós. 

Na icônica entrevista dada, em 1° de fevereiro de 1977, para a TV Cultura, quando Júlio Lerner a questiona: “então por que continuar escrevendo, Clarice

A escritora dá a seguinte resposta: E eu sei? Porque no fundo a gente não é, não tá querendo alterar as coisas, a gente tá querendo desabrochar, de um modo ou de outro

E  de repente entendi tudo. Eu podia lhe dar uma resposta. Conceição também. 

A Flor de Mulungu 

Eu, na escuta de Macabéa, ia pedindo a vida que ficasse de prontidão […] E, enquanto ela me narrava o encantamento de trazer pessoas ao mundo, foi que me veio a revelação. Macabéa ficava. 

Todo o texto de Conceição Evaristo é acompanhado das ilustrações de Luciana Nabuco. Elas estão dispostas de maneira alternada com o texto, mas o mais bonito é que antes de vê-las por completo, temos um recorte de cada uma delas como uma anunciação dos traços.

Eu vi a moça, a outra. Uma Macabéa outra. E essa outra, vi em seu estado de breve floração. Mas em estado tão breve, que de tão breve, em mim se fez eterno. De Macabéa todas as pessoas fantasiavam somente a brabeza do desamparo. 

A autora recria um passado a Macabéa e lhe desenha um futuro. Dando a ela o título de portadora de outras tantas vozes e o dom divino de brilhar no nascimento de outras tantas como ela. 

E, claro, tudo isso trabalhado numa dialética poética com o texto de Clarice, que é difícil não se emocionar a cada virada de página. Quanto ao significado da Flor de Mulungu? Convido vocês a lerem e desabrocharem por si mesmos. 

Esse na verdade foi o segundo livro lido deste ano, mas foi preciso voltar a ele diversas vezes para contemplação de sua grandeza.

2 respostas para “A estrela que floresceu”.

  1. Avatar de Carolina e os olhos que guardam a dor do mundo. – A Traça-Livros

    […] fossem as sílabas de sábado, Véspera, A natureza da Mordida, Solitária, Olhos D’água, Macabéa Flor de Mulungu, A Cabeça de Santo, Copo Vazio e Quarto de Despejo, Diário de uma […]

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  2. Avatar de Deixa em paz meu coração… – A Traça-Livros

    […] das duas outras resenhas de livros da autora mineira, antes de falar desta obra, quero uma licença para falar do acontecimento que é […]

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