Quando Ponciá Vicêncio viu o arco-íris no céu, sentiu um calafrio. Recordou o medo que tivera durante toda a infância.

Eu sei que por um instante você pode pensar que eu tenha feito confusão entre o nome da personagem e o nome da autora deste livro, mas não. Já que a própria Conceição Evaristo afirma que o choro de sua personagem, às vezes, se confunde com o dela.

A nossa afinidade (Ponciá e eu) é tão grande, que, apesar de nossas histórias diferenciadas, muitas vezes meu nome é trocado pelo dela […] Na con(fusão) já me pediram autógrafo, me abordando carinhosamente por Ponciá Evaristo.

E já que o choro de Ponciá é de Conceição, tanto quanto o nosso, também posso dizer o quanto fui arrebatada pela sua leitura.

Ponciá Vicêncio é uma obra profundamente evocativa que explora a trajetória da personagem, uma mulher negra que cresce em uma comunidade de descendentes de escravos no interior do Brasil.

Publicado pela Editora Pallas, esta obra de Conceição Evaristo possui apenas 118 páginas de muita emoção. Carrega toda uma triste alegria do retorno ao útero da terra, talvez uma herança que resta a nós leitores de Vô Vicêncio.

A narrativa é marcada por flashbacks e conduz o leitor pela vida dela desde sua infância até a idade adulta, revelando uma história rica em simbolismo, herança e resistência.

A história de Ponciá é fortemente influenciada pela figura de seu avô, um homem que, em um momento de desespero e revolta contra a escravidão, matou a esposa e tentou suicídio, mutilando-se. 

[…] Um dia ele teve uma crise de choro e riso tão profunda, tão feliz, tão amarga e desse jeito adentrou-se no outro mundo.

Esta tragédia marca profundamente a família, especialmente Ponciá, que, desde pequena, sente-se conectada ao avô, chegando a modelar um boneco de barro idêntico a ele, assustando sua mãe e consolidando a ideia de que carrega uma herança desse avô.

Ponciá Vicêncio, mesmo menina de colo ainda, nunca esqueceu o derradeiro choro e riso do avô. Nunca esqueceu que, naquela noite, ela que pouco via o pai, pois ele trabalhava lá nas terras dos brancos, escutou quando ele disse para mãe que Vô Vicêncio deixava uma herança para menina.

A narrativa de Evaristo mergulha no íntimo dos personagens, explorando seus sentimentos e experiências com uma sensibilidade única. 

A felicidade infantil de Ponciá, retratada em brincadeiras sob o arco-íris, contrasta com as dificuldades que enfrenta ao se mudar para a cidade grande em busca de uma vida melhor. 

Após a morte do pai, Ponciá parte em uma jornada que simboliza a busca por identidade e sobrevivência em um ambiente urbano muitas vezes hostil.

A transição para a cidade é marcada por desafios. Ponciá passa uma noite na porta de uma igreja antes de conseguir um emprego de doméstica. Enquanto trabalha para juntar dinheiro e trazer sua mãe e irmão para morar com ela, seu irmão Luandi também decide migrar para a cidade. 

Luandi consegue um emprego de faxineiro na delegacia, graças ao soldado Nestor, e nutre o sonho de se tornar soldado. Paralelamente, Maria Vicêncio, sentindo a ausência dos filhos, decide vagar pelas vilas, esperando o momento de se reunir com eles.

Evaristo não se esquiva de mostrar as adversidades enfrentadas por Ponciá. Em um relacionamento abusivo e sofrendo de apatia após várias perdas, incluindo múltiplos abortos, Ponciá luta para manter-se firme. 

Em contraste, Luandi, que aprende a ler e escrever, se aproxima de seu sonho de ser soldado e encontra amor em Bilisa, uma mulher também em busca de uma vida melhor. No entanto, a felicidade de Luandi é tragicamente interrompida quando Bilisa é assassinada, um evento que desmorona seus planos futuros.

[…] A vida escrava continuava até os dias de hoje. Sim, ela era escrava também. Escrava de uma condição de vida que se repetia. Escrava do desespero, da falta de esperança, da impossibilidade de travar novas batalhas, de organizar novos quilombos, de inventar outra e nova vida.

A conclusão da história traz um retorno às origens. Ponciá, tomada por uma saudade do barro, decide voltar à Vila Vicêncio. Na estação de trem, encontra sua mãe e seu irmão, e juntos retornam à vila, onde Ponciá finalmente cumpre sua herança ancestral ao lado do rio, do arco-íris e do barro.

Ponciá Vicêncio é um livro que se destaca pela profundidade de seus personagens e pela riqueza de sua narrativa. Conceição Evaristo oferece uma reflexão poderosa sobre herança, identidade e resistência, capturando a complexidade da experiência afro-brasileira. 

[…] Descobria também que não bastava saber ler e assinar o nome. Da leitura era preciso tirar outra sabedoria. Era preciso autorizar o texto da própria vida, assim como era preciso ajudar a construir a história dos seus.

Através da história de Ponciá, Evaristo revela as cicatrizes do passado escravista do Brasil e a luta contínua por dignidade e reconhecimento.

A obra é um testemunho do poder da memória e da importância de se reconectar com as raízes para encontrar força e sentido na vida presente.

Esta leitura a fiz em paralelo com a de Um defeito de cor, de  Ana Maria Gonçalves, que ainda não terminei, mas tem me trazido uma experiência literária única.

Uma resposta para “O choro de Ponciá Evaristo.”.

  1. Avatar de Deixa em paz meu coração… – A Traça-Livros

    […] das duas outras resenhas de livros da autora mineira, antes de falar desta obra, quero uma licença para […]

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