Carolina e os olhos que guardam a dor do mundo.

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15 de julho de 1955
Aniversário de minha filha Vera Eunice.

Quando criei todo o conceito da Traça-Livros, busquei alcançar metas de leitura sem muita definição. Assim fiz, para ter mais liberdade de me colocar em contato com literaturas mundo afora.

Ano passado tentei me manter como nos anos anteriores, entre clássicos mundiais e contemporâneos. Porém, para este, decidi estabelecer um objetivo prioritário: ler mais literatura brasileira.

Entre os livros que coloquei na minha lista estão: Memórias Póstumas de Brás Cubas, Capitães de Areia, Vidas Secas, Grande Sertão Veredas, O cortiço, Gabriela, Cravo & Canela, Anarquistas Graças a Deus, Sagarana, São Bernardo, Angústia, O peso do Pássaro Morto, É sempre a hora de nossa morte amém, Não fossem as sílabas de sábado, Véspera, A natureza da Mordida, Solitária, Olhos D’água, Macabéa Flor de Mulungu, A Cabeça de Santo, Copo Vazio e Quarto de Despejo, Diário de uma favelada.

Como vocês podem perceber, só de passar os olhos por essa lista, a nossa literatura, assim como a tonalidade das peles que constituem nosso país, é rica em vozes que ecoam as diversas realidades do país.

… O senhor Dario ficou horrorizado com a primitividade em que eu vivo. Ele olhava tudo com assombro. Mas ele deve aprender que a favela é o quarto de despejo de São Paulo. E que eu sou uma despejada.

Entre essas vozes, a de Carolina Maria de Jesus tinha uma vontade impressa a tomar lugar na fila. Eu já meio que sabia que Carolina tinha sido uma mulher extraordinária e que por meio de suas palavras, havia trazido à luz a dura realidade da vida nas favelas.

Seu livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, é um testemunho visceral que transcende o tempo e continua a ressoar intensamente. Tanto é que ele é uma força motriz para a personagem de Eunice, de Solitária. A edição que eu li foi esta aqui da Editora Ática, mas há outra comemorativa também da mesma editora.

24 de julho
Como é horrível levantar de manhã e não ter nada para comer. Pensei até em me suicidar. Eu suicidando-me é por deficiência de alimentação no estomago. E por infelicidade eu amanheci com fome.

Carolina Maria de Jesus nasceu em Minas Gerais em 1914 e, ao longo de sua vida, enfrentou inúmeras dificuldades. É uma leitora e crítica voraz das literaturas e do mundo que observa.

Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro.

Mãe solteira de três filhos, ela teve que lidar com a pobreza extrema e a discriminação racial. Sua trajetória é marcada por uma busca constante por dignidade e justiça social.

Percebi que chegaram novas pessoas para a favela […] Fitei a nova companheira de infortúnio. Ela olhava a favela, suas lamas e suas crianças paupérrimas. Foi o olhar mais triste que eu já presenciei. Talvez ela não mais tem ilusão. Entregou sua vida aos cuidados da vida.

O livro Quarto de Despejo contem os diários escritos por Maria Carolina de Jesus entre 1955 e 1960.

Quando fico nervosa não gosto de discutir. Prefiro escrever. Todos os dias eu escrevo. Sento no quintal e escrevo.
— O que escreve? — Todas as lambanças que pratica os favelados, estes projetos de gente humana.

Nesse período, ela viveu na favela do Canindé, em São Paulo, e registrava diariamente suas experiências, observações e reflexões.

A favela é o quarto de despejo. E as autoridades ignoram que tem o quarto de despejo. 

O resultado é uma narrativa crua e impactante que mergulha nas condições desumanas e na luta diária pela sobrevivência. Sua escrita autêntica e direta rompeu barreiras, dando voz aos marginalizados e lançando luz sobre a realidade muitas vezes invisível das favelas brasileiras.

… Fui na sapataria retirar os papéis. Um sapateiro perguntou-me se o meu livro é comunista. Respondi que é realista. Ele disse-me que não é aconselhável escrever a realidade. 

O livro de Carolina foi publicado em 1960 e rapidamente se tornou um sucesso, sendo traduzido para diversos idiomas. A trajetória de Carolina como escritora teve início quando, como resultado de uma matéria jornalística na favela do Canindé, o jornalista Audálio Dantas cruzou caminhos com ela.

Tenho apenas dois anos de grupo escolar, mas procurei formar o meu carater. A unica coisa que não existe na favela é solidariedade.

Foi ela quem lhe apresentou seus cadernos, e diante do impressionante material, Dantas se dedicou a organizar e revisar os manuscritos, mantendo a escrita de Carolina e desempenhando um papel crucial na publicação do livro em 1960.

Durante esse período, surgiram especulações sobre a autoria dos manuscritos, mas o jornalista esclareceu que sua intervenção se resumiu à correção de pontuação, grafia e eliminação de repetições, especialmente nos trechos que abordavam a frequente realidade da fome na favela.

Era o Seu João. Quiz saber o que eu escrevia. Eu disse ser o meu diário.  — Nunca vi uma preta gostar tanto de livros como você. Todos tem um ideal. O meu é gostar de ler. O Seu João deu cinquenta centavos para cada menino. Quando ele me conheceu eu só tinha dois meninos.

O impacto literário do livro reverberou globalmente, resultando na venda de 30 mil cópias apenas na primeira edição. Carolina alcançou a fama e algum sucesso financeiro, embora não tenha enriquecido. Na favela, seus conhecidos acreditavam erroneamente que ela acumulara riquezas, solicitando dinheiro e, muitas vezes, não o devolvendo.

Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo  […] Devo incluir-me, porque eu também sou favelada. Sou rebotalho. Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo.

Antes desse reconhecimento, Carolina havia tentado, sem êxito, conseguir a publicação de seus escritos por uma editora nos Estados Unidos, em busca de condições básicas de vida para ela e seus filhos. Os manuscritos enviados foram rejeitados.

O branco é que diz que é superior. Mas que superioridade apresenta o branco? Se o negro bebe pinga, o branco bebe. A enfermidade que atinge o preto, atinge o branco. Se o branco sente fome, o negro também. A natureza não seleciona ninguém. 

Apesar de outras publicações posteriores, nenhuma atingiu o mesmo sucesso. Dezessete anos após a publicação de seu primeiro livro, em 13 de fevereiro de 1977, Carolina faleceu quase esquecida, residindo em um sítio na periferia de São Paulo, aos 63 anos.

[…] O senhor Manuel apareceu dizendo que quer casar-se comigo. Mas eu não quero porque já estou na maturidade. E depois, um homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lapis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefiro viver só para o meu ideal.

Quarto de Despejo permanece como um testemunho poderoso e atemporal, convidando-nos a refletir sobre as desigualdades sociais e a importância de dar voz aos que muitas vezes são silenciados.

Ao conhecer a vida e obra de Carolina Maria de Jesus, mergulhamos não apenas em sua história pessoal, mas também nas profundezas da complexa tapeçaria social que molda o Brasil.

Esta foi uma das minhas leitura do mês de Janeiro. E lê-lo depois de ter lido Solitária comprovou ainda mais minha teoria de que, embora o fim de Carolina tenha sido solitário, seu pranto tem como sim ajudar , pois sua voz ressoa em outros universos literários. Ainda bem.

Uma resposta para “Carolina e os olhos que guardam a dor do mundo.”.

  1. Avatar de Deixa em paz meu coração… – A Traça-Livros

    […] a segunda leitura deste ano que me acabo numa canção de Chico Buarque. A primeira foi esta. Olhos d’água, de Conceição Evaristo, publicado e editado pela Pallas Editora, completa […]

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