Das histórias não contadas

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Empresta-se para Iñe-e essa voz e essa língua, e mesmo essas letras, todas muito bem-arrumadas, dispostas umas atrás das outras, como um colar de formigas pelo chão, porque agora esse é o único meio disponível.

Se você está em busca de obras que transcendem o convencional, assim como eu, precisa conhecer O som do rugido da onça, o premiado romance de Micheliny Verunschk.

Lançado em 2021 pela Companhia das Letras, não só conquistou o Prêmio Jabuti e o Prêmio Oceanos, como também se destacou pela sua narrativa poderosa e profundamente lírica.

A ilustração da capa se chama O clã das onças, é uma pintura acrílica sobre papel do artivista do povo Macuxi, Jaider Esbell, de 2020. Sua reprodução foi feita por André Hauk.

Escritora, crítica literária, compositora e historiadora brasileira, Micheliny Verunschk nasceu em Recife em 10 de julho de 1972.

Com uma sólida formação acadêmica, ela é Mestre em Literatura e Crítica Literária e Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC São Paulo.

Sua carreira literária é marcada por inúmeros reconhecimentos, incluindo o Prêmio São Paulo de Literatura de 2015 por Nossa Teresa – vida e morte de uma santa suicida e o segundo lugar no Prêmio Biblioteca Nacional na categoria Poesia em 2021.

Para contar esta história, Iñe-e adverte que não é possível ser tolerante. Ademais, usa-se essa voz e essa língua, porque é com ela que se faz possível ferir melhor.

A narrativa de “O som do rugido da onça” transporta o leitor para 1817, quando os naturalistas Spix e Martius desembarcam no Brasil com a missão de documentar suas impressões sobre o país.

Miranha (Isabela), 1823 | Juri, 1823 

Entre ela e o filho do chefe dos juris, havia um mundo de silêncio. O mundo de palavras suas, aquelas com que a mãe e seus familiares lhe proveram, gravitava ali apenas em torno dela mesma.

Após três anos de expedição, retornam a Munique trazendo consigo dois jovens indígenas, Iñe-e e Juri, que infelizmente faleceriam pouco após chegarem à Europa.

Micheliny Verunschk magistralmente desvia da historiografia tradicional, centrando sua narrativa nas vozes das crianças indígenas arrancadas de sua terra natal.

Só quem está vivo consegue escutar a voz do mundo, entender sua linguagem, seu rumor, os ermos e luminescências de suas palavras, e por estar vivo é que consegue responder.

Além disso, a trama entrelaça o Brasil do século XIX com o contemporâneo, apresentando Josefa, uma jovem que descobre lacunas em seu passado ao reconhecer a imagem de Iñe-e em uma exposição.

O som do rugido da onça é uma obra rica em lirismo que aborda temas fundamentais como: a memória, quando traz a importância de recordar e honrar as histórias individuais e coletivas; o colonialismo, que é trazido como uma crítica ao impacto devastador do colonialismo na vida dos povos indígenas; e o pertencimento, quando mostra a busca por identidade e reconhecimento em um contexto de desarraigamento cultural.

Entrar em contato com esta obra me fez lembrar de duas leituras que realizei na época da faculdade de letras, Mar Paraguayo, de Wilson Bueno e Meu tio o iauretê, conto do livro Estas Histórias, de Guimarães Rosa.

Onça, onça. Onça gosta de rio e de sombra de árvore. No começo não havia nem terra nem água. Havia era uma árvore no meio do nada, com folhas grandes enramando pra cima e as raízes torcidas correndo pra baixo.

Pois em ambos pode se observar um trabalho linguístico minucioso dos escritores para mostrar a mistura de idiomas de que é feita a língua brasileira.

Começo a devolver a sua linguagem e a recuperar a minha. Arre! […] Agora chega o momento que não tem mais precisão disso, não. Mas antes que me despeça e retome por completo a minha fala própria e natural, conto que Iñe-e era menina de Tipai uu.

Inclusive tenho tatuado no braço esquerdo a palavra pi’ambareté, que significa coração forte em Tupi-Guarani, por conta de um sonho que tive. Reduzi o sonho a conto, mas trago essa história em um outro post.

O som do rugido da onça, solidifica um lugar para Micheliny Verunschk, como uma das vozes mais importantes da literatura contemporânea brasileira.

Na sala, a TV ligada transmite a imagem de um cacique de cabelo longo. O cacique olha para a câmera e diz: Não sei o que vocês vão fazer com a minha imagem. Eu não aprovo isso. Vocês mentem. O homem branco não liga para nós. Eu odeio todos vocês.

Sua habilidade em tecer uma narrativa que une passado e presente, ao mesmo tempo em que dá voz aos silenciados pela história, faz deste livro uma leitura essencial para qualquer amante da literatura brasileira.

Este foi um dos livros que me acompanhou na leitura de Um defeito de cor, que tem sido uma outra experiência épica. Nos vemos no próximo post?

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