Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d’água

É a segunda leitura deste ano que me acabo numa canção de Chico Buarque. A primeira foi esta. Olhos d’água, de Conceição Evaristo, publicado e editado pela Pallas Editora, completa este ano 10 anos de seu lançamento.

Uma noite, há anos, acordei bruscamente e uma estranha pergunta explodiu de minha boca. De que cor eram os olhos de minha mãe?

Eu não sei explicar a relação dessas leituras com a vontade súbita de escutar o velho Chico, mas garanto que elas me trouxeram a sensação de que qualquer coisa a mais, existiria em mim um transbordamento.

Diferentemente das duas outras resenhas de livros da autora mineira, antes de falar desta obra, quero uma licença para falar do acontecimento que é ela, Conceição Evaristo. Mas aproveitem e apreciem trechos dos contos que compõem Olhos d’água.

Conceição

Nascida em 29 de novembro de 1946 em Belo Horizonte, é uma das mais influentes escritoras contemporâneas do Brasil.

A trajetória de Evaristo é marcada por uma dedicação intensa à educação, à literatura e à luta contra as desigualdades sociais, consolidando-se como uma figura central no movimento pós-modernista e na literatura afro-brasileira.

[…] As labaredas, sob a água solitária fervia na panela cheia de fome, pareciam debochar do vazio do nosso estômago, ignorando nossas bocas infantis em que as línguas brincavam a salivar sonho de comida.

Crescida na favela do Pendura Saia, na zona sul de Belo Horizonte, Conceição Evaristo enfrentou desde cedo as adversidades de uma vida marcada pela pobreza.

Sua mãe, Joana Josefina Evaristo Vitorino, desempenhou um papel crucial ao incentivá-la a ler e escrever, plantando as sementes do que viria a ser uma prolífica carreira literária.

[…] Eu sabia, desde aquela época, que a mãe inventava esse e outros jogos para distrair a nossa fome. E a nossa fome se distraía.

Foi no ambiente desafiador da favela que Evaristo começou a moldar sua voz única, uma voz que ecoaria as histórias e as lutas da população negra brasileira.

Determinada a superar as limitações impostas pela sua origem humilde, Evaristo se mudou para o Rio de Janeiro em 1973, onde iniciou sua carreira como professora na rede pública de ensino.

[…] Diversas vezes levou a mão lá dentro e retornou com um imaginário alimento que jogava prazerosamente à boca. Quando se fartou deste sonho, arrotou satisfeita, abandonando a lata na escadaria da igreja […].

Não se contentando apenas com o magistério, ela buscou aprofundar seus conhecimentos e ingressou no curso de Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1987, formando-se em 1990.

Seu envolvimento com o grupo Quilombhoje foi um ponto de virada em sua carreira. Este coletivo literário incentivou Evaristo a publicar suas primeiras obras, que mais tarde fariam parte da série “Cadernos Negros”.

Foi nesse contexto que ela começou a esculpir seu legado literário, explorando temas de discriminação racial, de gênero e de classe.

Salinda tombou suavemente o rosto e com as mãos em concha colheu, pela milésima vez, a sensação impregnada do beijo em sua face. Depois, com um gesto lento e cuidadoso, abriu as palmas das mãos, contemplando-as. Sim, lá estava o vestígio do carinho. Algo tão tênue, como os restos de uma asa amarela, de uma borboleta-menina, que foi atropelada nos primeiros instantes de seu inaugural voo.

O primeiro romance de Conceição Evaristo, Ponciá Vicêncio, publicado em 2003, é uma obra seminal que aborda as profundas marcas deixadas pela escravidão e a luta contínua pela identidade e dignidade entre os afro-brasileiros.

A resenha de Ponciá Vicêncio, você pode acessar aqui.

A narrativa poderosa e poética de Evaristo ganhou reconhecimento não só no Brasil, mas também no exterior, com a tradução do romance para o inglês e sua publicação nos Estados Unidos em 2007.

Suas obras subsequentemente continuaram a explorar as complexidades da experiência afro-brasileira. Em Becos da Memória, de 2006 e Olhos d’Água, de 2014, Evaristo tece histórias de resistência e resiliência, destacando-se pela profundidade emocional e pela riqueza de detalhes que capturam a realidade das periferias urbanas brasileiras.

[…] Encarou novamente o espelho e se lembrou de um poema, em que uma mulher, contemplando a sua imagem refletida, perguntava angustiada onde é que ela deixara a sua outra face, a antiga, pois não se reconhecia naquela que lhe estava sendo apresentada naquele momento.

Ao longo dos anos, Conceição Evaristo recebeu inúmeros prêmios e honrarias, incluindo o Troféu do Prêmio Juca Pato de Intelectual do Ano de 2023.

Suas contribuições à literatura e à cultura brasileiras foram amplamente reconhecidas, e ela recebeu títulos de doutora Honoris Causa por várias instituições, como o Instituto Federal do Sul de Minas (IFSULDEMINAS) e a Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB).

Em 2024, Evaristo foi eleita para a cadeira número 40 da Academia Mineira de Letras, uma conquista que simboliza não apenas o reconhecimento de sua obra, mas também a importância de sua voz na narrativa cultural e literária do Brasil.

Olhos d’água

O sol vinha nascendo molhado na praia de Copacabana. A indecisão do tempo, a manhã vagabunda nos olhos sonolentos dos moradores de rua, o trabalho inconsequente das ondas em seu fazer e desfazer, tudo isso comprometia o cooper de Cida.

Uma coleção de 15 contos que aborda uma miríade de temáticas sociais, existenciais e emocionais. Olhos d’água é uma verdadeira obra-prima que mergulha profundamente nas questões de racismo, violência e amor, oferecendo ao leitor uma visão multifacetada da realidade vivida pelos afro-brasileiros.

Engana-se que por tomá-lo por um livro curto. Cada leitura e cada vivência trazida ali é um fôlego arrancado.

Você pode adquiri-lo aqui. Inclusive, está disponível em audiolivro, pela Audible.

A escolha estética de Conceição Evaristo para as narrativas deste livro foi o que ela cunhou de escrevivência. Ou seja, sua escrita vai além da mera narrativa; é um ato de resistência e de autoafirmação.

[…] Sentiu o coração e os seios. Lembrou-se então de que era uma mulher e não uma máquina desenfreada, louca, programada para corrercorrer. Envergonhou-se dos orgasmos premeditados, cronometrados que vinha cultivando até ali.

Evaristo utiliza suas histórias para expressar as experiências de vida e as vivências sociais daqueles que enfrentam a marginalização e a discriminação, oferecendo um espaço para que suas vozes sejam ouvidas e suas histórias, contadas.

Olhos d’Água destaca-se por suas narrativas protagonizadas, em sua maioria, por mulheres e homens afro-brasileiros que vivem em cenários marcados pela violência e pela exclusão social.

[…] As crianças obedeciam à recomendação de não brincarem longe de casa, mas às vezes se distraíam. E, então, não experimentavam somente as balas adocicadas, suaves, que derretiam na boca, mas ainda aquelas que lhes dissolviam a vida.

No entanto, Evaristo não se limita a retratar a dor e o sofrimento. Ela também ilumina a resistência e a resiliência desses personagens, explorando suas identidades e ancestralidades com profundidade e sensibilidade.

Cada personagem traz consigo uma visão de mundo rica e complexa, que reflete as muitas nuances de viver como um afro-brasileiro em um ambiente muitas vezes hostil.

Evaristo por meio de Olhos d’água nos desafia a ver além do estigma e a reconhecer a dignidade e a humanidade de seus personagens.

Neste livro, você encontrará os contos: Olhos d’água, Ana Davenga, Duzu-Querença, Maria, Quantos filhos Natalina teve?, Beijo na face, Luamanda, O Cooper de Cida, Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos, Di lixão, Lumbiá, Os amores de Kimbá, Ei, Ardoca, A gente combinamos de não morrer, Ayoluwa, a alegria de nosso povo.

Esta obra foi a minha primeira leitura pós ressaca literária e pós tombo que a vida me deu. Acredito que tenha sido uma boa escolha para uma retomada.

Nos vemos na próxima resenha? E o spoiler do que vem aí, eu postei aqui.

Uma resposta para “Deixe em paz meu coração…”.

  1. Avatar de Rodrigo Padrini Monteiro

    Fiquei com vontade de ler outros dela. Só li este, por enquanto. Muito boa resenha!

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